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Sobre a ciência da Mindfulness: uma entrevista com o Dr. David Vago

September 26, 2016 6:00 pm    Back to Home

Entrevista original em Inglês http://scienceofmindfulness.org/interview-dr-david-vago/

Dr David VagoDavid Vago é o mais recente Diretor de Pesquisas do Centro Osher de Medicina Integrativa na Universidade Vanderbilt, onde atua como professor associado no departamento de Medicina Física e no departamento de Reabilitação e Psiquiatria. Ele é psicólogo associado do Laboratório de Neuroimagem Funcional no Hospital Brigham; e é instrutor na Escola de Medicina de Harvard. David também trabalhou como Coordenador de Pesquisa Sênior para o Instituto Mind & Life e atualmente é Fellow do Instituto Mind and Life.

Poderia nos contar como você iniciou sua trajetória de pesquisador na ciência da Atenção Plena?

É uma trajetória interessante. Acho que qualquer um que esteja investigando coisas que adora consegue se lembrar facilmente da série de eventos que o levaram até o presente. Pra mim, tudo começou com o meu primeiro retiro de meditação Vipassana em 1996. Estava no segundo ano de faculdade, fiz esse retiro de dez dias em silêncio e fiquei boquiaberto com o potencial transformador de se sentar em meditação formal. Eu sempre tive interesse pela perspectiva budista sobre a mente e fiz algumas aulas de religião durante os meus anos de graduação. Estudei neurociência cognitiva na especialização, mas o estudo da religião foi um bom paralelo com a neurociência. O Budismo nem se considera uma religião, mas sim uma ciência da mente. Mesmo assim, nunca pensei que poderia ser uma matéria em ciências ou um método para investigar a mente. De fato, entrei na graduação pela abordagem da neurociência básica de modelos de memória e aprendizado. Estava focando na farmacologia comportamental e em que tipos de neuroquímicos no cérebro afetam a maneira como codificamos, consolidamos e extraímos informações usando modelos animais. 

Eu medito desde 1996, mas nunca achei que poderia incorporar minha prática dentro da ciência que estudo. Aí, em 2004, assisti a um diálogo no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) entre Sua Santidade o Dalai Lama e grandes cientistas e especialistas, o que me levou a descobrir que havia um nicho para estudar a mente dessa forma. O Instituto Mind and Life também estava oferecendo uma bolsa quando eu estava quase terminando meu doutorado. Era o momento certo e o lugar certo. Recebi uma bolsa intitulada Prêmio de Pesquisa Francisco J. Varela e era o programa principal do Instituto Mind and Life. Era um dos fatores mais determinantes no desenvolvimento do campo da neurociência contemplativa. Sem esse programa com bolsa, muitos cientistas nunca teriam entrado nessa pesquisa.

Cerca de 150 outros cientistas receberam esse prêmio. Naquele momento, em que cientistas eram jovens e crescendo intelectualmente, com um pouco de apoio de orientadores, esse tipo de financiamento tornou-se a semente para futuras pesquisas. Muitas das informações que surgiram desse programa levaram a novos programas inteiros de pesquisas. A princípio, usei a bolsa para investigar metodologicamente o que também me interessava: memória, codificação, aprendizado, regulação emocional e funções executivas. Olhamos para esses aspectos da mente no contexto da dor crônica e de como mulheres diagnosticadas como fibromialgia processam informações relacionadas à dor.

“Eu me senti como se tivesse encontrado meu nicho. Foi uma série de eventos que foram se sucedendo e que eu não tinha como frear. Tornou-se uma vocação para mim.”

Depois que recebi a bolsa, o Instituto Mind and Life começou a procurar um Cientista Sênior. Eu me candidatei, consegui a vaga e trabalhei com eles por quatro anos como cientista sênior e coordenador de pesquisas. Isso me colocou em contato com pessoas incríveis como Sua Santidade o Dalai Lama, Jon Kabat-Zinn e Richard Davidson. Eu me senti como se tivesse encontrado meu nicho. Foi uma série de eventos que foram se sucedendo e que eu não tinha como frear. Tornou-se uma vocação para mim. Tive até a oportunidade de apresentar minha pesquisa ao Dalai Lama, na Clínica Mayo em Rochester, Minnesota, EUA, como parte do evento XXV Mind and Life, e ele considerou que os meus modelos eram “bem bons”. Éramos seis apresentando e representando os bolsistas Varela. Sua Santidade apontou o dedo para nós e disse, “Vocês são todos responsáveis por diminuir o sofrimento nesse mundo. Eu estarei de olho…” Ouvir isso do Dalai Lama foi bem expressivo e eu o levei à serio, e me comprometi mais  profundamente com o potencial autotransformador que essas práticas podem ter. Os campos de pesquisas em ciência contemplativa e mindfulness estão agora se tornando cada vez mais precisos, tanto no aspecto teórico e mecanicista quanto na maneira como funcionam. Precisamos entender como essas práticas funcionam e qual é a melhor forma de aplicá-las a determinados indivíduos – esse é basicamente meu programa de pesquisa para os próximos 30 anos.

Você tem uma prática pessoal de mindfulness ? Se sim, no que ela contribui para sua investigação científica?

Sim, tenho. Assim como um cardiologista pratica exercícios e tem uma boa dieta, você descobre na prática os benefícios do seu trabalho. Imagine um cardiologista que fosse obeso e não praticasse exercícios regularmente. Você poderia não confiar no engajamento que ele tem com a medicina. Como um praticante de meditação, tenho maior clareza sobre o que essas práticas fazem e tenho mais ideias para pesquisas. E isso me possibilita checar em mim mesmo se eu estou sendo dragado pelo jogo de egos da Academia. Também me permite ser mais altruísta nos meus motivos para ajudar os outros. Vejo isso como um serviço que faço para ajudar os outros.

Sem uma prática, acho que é possível manter-se objetivo no âmbito da ciência, mas você pode perder muito no que se refere às ferramentas e métodos que podem ser utilizados para investigar o que a prática de mindfulness está produzindo. Por exemplo, se você fosse um praticante, você poderia tomar um dos oito itens de auto-avaliação de mindfulness e usá-lo em seu experimento para testar se índices altos de traços de mindfulness são preditivos de melhoras na atenção. O que você poderia descobrir seria que índices elevados de traço de mindfulness podem não resultar em melhoras na atenção. Resultados como esse certamente são significativos, mas podem não demonstrar o potencial transformativo de se sentar em meditação.

“Quando estamos falamos sobre o porquê de fazermos essas práticas, não é para simplesmente sentar em um canto com os olhos fechados. Trata-se de criar um senso mais profundo de conexão. Toda a ideia por trás das práticas contemplativas é nos levar introspectivamente a um estilo de processo cognitivo que permite que nos engajemos em um tipo de ação profundamente significativa que é benéfica para nós mesmos e para os outros.”

Há uma complexidade que está associada a ter uma prática; não é apenas uma solução rápida para o estresse do dia a dia. Trata-se de uma mudança em nossas vidas que transforma nossa maneira de ser e que pode ter efeitos profundos em todos os âmbitos e não apenas na regulação da atenção ou da emoção. Há todo um sistema de elementos que são influenciados por essas práticas e que frequentemente passam despercebidos nas pesquisas. Se você não for um praticante, as sutilezas da prática podem não ser percebidas. Existe também a ideia de que uma transformação ética melhora nossas tendências pró sociais e nossos motivos altruístas. Quando estamos falamos sobre o porquê de fazermos essas práticas, não é para simplesmente sentar em um canto com os olhos fechados. Trata-se de criar um senso mais profundo de conexão. Toda a ideia por trás das práticas contemplativas é nos levar introspectivamente a um estilo de processo cognitivo que permite que nos engajemos em um tipo de ação profundamente significativa que é benéfica para nós mesmos e para os outros. De maneira geral, a prática contemplativa é muito mais baseada na experiência e tem o potencial de revelar a natureza da mente, e essa experiência pode ser transmitida a outros. Mais para frente na prática, você poderá ter um insight mais profundo sobre a natureza da realidade em si e isso é muito mais profundo do que algumas das simples técnicas de redução de estresse que estão por aí para pessoas com sintomas de ansiedade e depressão.

Em sua opinião, o insight decorrente da prática contemplativa de uma pessoa pode ser útil para alguém que esteja estudando a ciência de Mindfulness? Ou basta que você seja um bom cientista para poder compreender a essência da prática de mindfulness, tal como a ciência a define?

Eu acho que é muito importante termos perspectivas interdisciplinares e é bom que tenhamos cientistas que não sejam praticantes. Isso pode equilibrar um pouco do otimismo enviesado que vemos por aí. Tipicamente, vemos efeitos positivos, mas existem muitos efeitos nulos que muitos pesquisadores não estão relatando. Eu vou repetir mais uma vez que ser praticante nos dá um nível de insight que aprimora nossas questões e nosso projeto de pesquisa, especialmente quando estamos focando em uma abordagem neurofenomenológica. Ela combina os tradicionais métodos de neuroimagem com um método introspectivo em primeira pessoa. A nossa Iniciativa para Mapear a Mente Meditativa (Mapping the Meditative Mind Initiative) combina a experiência introspectiva em primeira pessoa com o método neurocientífico em terceira pessoa. Com essa abordagem, nós chegamos a mais insights sobre todo o espectro da experiência. O método ideal que podemos utilizar para mapear a mente meditativa é combinar a perspectiva em primeira pessoa, de pessoas treinadas para investigar essa experiência subjetiva, com a perspectiva em terceira pessoa usando técnicas de neuroimagem.

Como que você começou a se envolver com o Instituto Mind and Life? Por que o trabalho deles é relevante?

Tudo começou com a intenção do Dalai Lama. Você já deve ter ouvido a história de que, quando jovem, ele era muito curioso sobre como as coisas funcionavam; ele desmontava tudo e depois montava de novo.  Por causa desse interesse dele na ciência, estou hoje fazendo o que eu faço e estamos aqui nessa entrevista.

O Instituto Mind and Life materializou-se por meio de Francisco Varela, um neurocientista cognitivo; de Adam Engle, um empresário; de Sua Santidade o Dalai Lama; e de Joan Halifax, uma Roshi Zen e antropóloga médica. A confluência do interesse e do trabalho deles, fomentados pelo Instituto Mind and Life, criou esse novo campo de estudos chamado ciência contemplativa, onde o diálogo se manteve fundamental. O diálogo sobre a natureza da mente, por diferentes perspectivas, chamou a atenção de todos. Esse campo precisava de pesquisas para engrenar, e o fato de que Francisco Varela estava envolvido não bastava; era preciso que mais pessoas se envolvessem. É por isso que o Instituto Mind and Life criou esse programa de premiação com bolsas depois que ele faleceu e esse subsídio inicial contribuiu para essa “revolução de mindfulness”. Esse subsídio inicial abasteceu esse campo e permitiu que pesquisadores se dedicassem ao tema formalmente. Foi só na última década que o interesse e a pesquisa no tema mudaram dramaticamente.

O conceito de “mindfulness” é vago; quais são os desafios para operacionalizá-la? Os termos devem ser extraídos das tradições contemplativas, como apresentados pelos budistas, por exemplo, ou eles devem vir das definições ocidentais, expressas por cientistas como Jon Kabat-Zinn?

Eu sempre faço essa distinção entre uma tradição de 2.500 anos e uma tradição de 30 anos de Redução do Estresse baseada em Mindfulness (MBSR). Se você as coloca lado a lado, os objetivos são diferentes, o contexto é diferente e os processos pelos quais mindfulness é praticada são diferentes.  Por exemplo, um parâmetro de autoavaliação – que não requer nenhuma experiência em meditação, nenhum conhecimento de budismo, nenhuma autorreflexão – pode apresentar alguma correlação com algum tipo de comportamento. Você pode ter o que chamamos de indução de mindfulness, que pode ser ficar 10 segundo ou menos em um estado de atenção, colocando intenção e sem fazer julgamentos – você pode fazer isso agora mesmo.

O que queremos compreender é que talvez haja uma trajetória de desenvolvimento e transformação pessoal que vai dos 10 segundos de indução de mindfulness a 20 anos de prática regular e continuada. Já começamos a identificar uma diferença na continuidade e na intensidade, aí nós podemos colocar isso no mapa, entender as nuances da prática e podemos começar a entender os mecanismos pelos quais essas práticas funcionam de um contexto para o outro e quem vai se beneficiar mais de determinadas práticas.

Uma coisa que podemos investigar são as semelhanças que existem entre as tradições. O que percebemos é que a essência dessas práticas é similar. A atenção focada na respiração, ‘anapanasati’, foi a meditação original ensinada pelo Buda, que é a concentração na respiração. Outras práticas essenciais incluem a meditação do insight, também conhecida como ‘vipassana’, além de práticas não-dualistas que cultivam uma consciência aberta. Há também uma base no cultivo da compaixão e de motivações altruístas, ‘metta’, que é essencial nessas práticas. Existem ainda outros elementos também.

No modelo budista, existem termos específicos como esforço, equanimidade, clareza, só pra citar alguns; mindfulness é apenas um dos sete fatores da Iluminação e é apenas um de muitos fatores que estão associados com o caminho espiritual no budismo. Então é preciso ir encaixando as peças – atenção focada, monitoramento aberto e bondade amorosa. Não apenas poderíamos chamar isso tudo de uma abordagem baseada em como também poderíamos afirmar que são compatíveis com todo o modelo de Redução de Estresse baseado em Mindfulness (MBSR em inglês), bem como com o modelo budista de 2.500 anos que você encontra nas estruturas monásticas. É importante contextualizar isso. Com o desenvolvimento dessa ciência, será possível identificar uma trajetória desse desenvolvimento, e isso vai nos ajudar a compreender melhor o progresso de um praticante e de um indivíduo que se beneficia de determinadas quantidades de prática. Há benefícios nos dois modelos; mas nós temos que ser claros sobre a qual deles estamos nos referindo.

No seu artigo mais recente, você, investiga as nuances de mindfulness e da mente distraída. Você propõe que a rede neural do estado de repouso pode ser a mesma rede utilizada nas práticas  baseadas em mindfulness. Quais são os principais substratos neurológicos responsáveis por essa similaridade e quais são as implicações disso?

Isso é importante. Cumpre lembrar que, quando nossa mente está em repouso, usando métodos de neuroimagem, podemos identificar pelo menos 10 redes neurais (networks) diferentes no cérebro. Uma delas é denominada rede em modo default (default mode network), que é particularmente robusta e ativa nesse estado da mente. Mas também existem pelo menos mais nove outras redes neurais que são ativadas durante esse estado, como as redes da atenção, a rede de controle frontoparietal, rede da saliência e das funções executivas, a sensorial e redes responsáveis pela linguagem – todas essas redes são identificadas durante o repouso. Depende do que a mente está fazendo durante o repouso. Como sabemos, a mente oscila; ela não chega a um estado de quietude. Ela está sempre consumindo energia e está sempre ativa. Ela precisa adequar a rede ao conteúdo, à atividade mental. Até esse momento, a maior parte das pesquisas tem enfocado a rede cerebral em modo default como uma rede associada com a atividade mental de autoavaliação e a isso atribuem a tristeza, por exemplo. Existem dados que indicam que quando essa rede está ativa, o conteúdo torna-se negativo, podendo afetar outras tarefas. Trata-se de uma forma de distração e possui uma relação causal com a distração. A maior parte de nossas vidas pode ser gasta com atividades mentais consideradas distrações. Cumpre lembrar que a ativação traz alguns benefícios. Alguns dos nós principais estão consumindo mais energia que outras partes do cérebro, simplesmente por manterem a continuidade, ao longo do tempo, da noção de sermos um indivíduo.

Um grande cientista, Tulving, chamou essa forma de consciência de ‘consciência autonoética’, em que o indivíduo cria a noção do eu por um processo automático. Sem essa noção de continuidade perpassando tempo e espaço, você teria muita dificuldade de saber quem você é. É preciso que haja algum tipo de processo que nos ajude a sabermos quem somos e que tenha alguma ligação com o passado e alguma orientação para o futuro. E a rede em modo default é muito importante para isso. Ela é útil para fomentar a criatividade e para planejar o futuro. Por outro lado, mindfulness tem sido associada a coisas positivas, apesar de existir também uma noção distorcida de que mindfulness tem que ter um foco no momento presente. Jon Kabat-Zinn criou uma definição de mindfulness que foi útil e que se refere a prestar atenção, colocando intenção, sem fazer julgamentos, no momento presente. Mas ela pode confundir as pessoas porque dá a impressão de que você não deve avaliar o mundo de jeito nenhum. Se você examinar o modelo budista, há um elemento ligado mindfulness, que se chama ‘samprajaňa’, e em alguns contextos, é traduzido como compreensão clara, também descrito como uma forma de metaconsciência. 

Há também um componente de discernimento que é crítico para mindfulness: avaliar o mundo muito rapidamente, sem se engajar muito profundamente com ele e acabar ficando preso. A ideia é pegar um conceito e se agarrar nele demais. Isso nos leva à ruminação, o que pode causar sofrimento. O que eu estou argumentando nesse artigo é que um discernimento rápido é crucial para a atenção consciente e se você deseja ter os benefícios de estar focado no presente, sem fazer julgamentos, e tendo equanimidade e clareza sensorial, é preciso que haja um engajamento muito rápido em determinados elementos da sua experiência, onde você está avaliando e discernindo, e depois se desengajando. Ao usar essa estrutura e as informações externas – as atividades funcionais do cérebro durante os estágios de meditação e as informações sobre a conectividade funcional -, podemos compreender melhor como essas redes estão interagindo umas com as outras. O que percebemos é que não há apenas uma rede associada com a atenção que é ativada, mas sim que essas redes estão alterando-se entre si de forma flexível e são moduladas por uma rede específica chamada rede de controle frontoparietal, que permite que sua mente tenha consciência de onde está. Se estiver no modo discursivo, sabe que está no discursivo. A conectividade crescente entre redes tornam possíveis mudanças mais flexíveis entre o discernimento e a consciência. Meu artigo argumenta que para que possamos compreender os benefícios da mente em silêncio e em repouso, temos que considerar a possibilidade de que a rede neural em modo default é na verdade benéfica para nos ajudar a discernir e para nos dar sabedoria. É nessa direção que essa área começa a avançar e é isso que estou interessado em investigar em pessoas que meditam.

Você mencionou que um dos benefícios da meditação é alcançar um estado de quietude. Você pode elaborar mais sobre isso?

O objetivo supremo do modelo budista é alcançar um estado de quietude da mente, que às vezes é definido como autotranscedência ou um estado de não dualidade em que não há distinção entre o eu e os outros. A minha experiência deixa de ser minha e passa suavemente a se conectar e a ser sentida como apenas um estado de pura consciência. Diferentes tradições vão descrever de forma diferente esse estado em que tempo e espaço desaparecem, mas nesse contexto contemporâneo dos esportes e da música, as pessoas podem descrevê-lo como “estado de fluxo”, ou “estado de flow”.  Todos esses estados são na verdade muito similares entre si no sentido de que há uma noção de ausência de um eu. Não há um alguém que pensa. Você deixa de obstruir a si mesmo no sentido de que você passa a fazer o que você se propõe a fazer sem desvios. Esse estado é cultivado por meio de práticas de meditação, mas esses estados não são sempre estáveis ou duradouros ­– eles são efêmeros. Esses estados de ausência de um eu podem ser considerados expressões daquilo a que se chama de ‘despertar’ e experienciar esses estados pode também favorecer estados de alegria. Nesse contexto, existem elementos daquilo a que nos referimos como ‘Iluminação’ que podemos colocar sob as lentes da neurociência para entendermos melhor que tipo de estados sutis e profundos as pessoas estão experimentando.

Na sua vida, você acha que um dia encontraremos assinaturas neurológicas distintivas que caracterizam essa experiência?

Sim. Acho que podemos caracterizá-las de muitas maneiras. A abordagem neurofenomenológica é provavelmente a melhor delas. Nós já tivemos pessoas que afirmam que tiveram a experiência de completa dissolução do eu – o que é descrito em alguns círculos budistas contemporâneos como a “cessação”. Nós precisamos pegar essas pessoas para avaliar esses estados durante uma sessão de neuroimagem. A parte difícil é identificar o momento em esse estado acontece. Quando as pessoas indicam que ele aconteceu, geralmente elas dizem que o estado aconteceu em retrospectiva, quando a sessão já acabou. É preciso ter alguns indicadores de tempo para determinar se houve alguma mudança perceptível naquele momento. É importante termos esses indicadores temporais combinados com a experiência subjetiva. Esse tipo de caracterização dessas experiências permite que elas sejam replicadas e quando são consistentes podem ser usadas como objetivos com propósitos terapêuticos. Ao identificarmos os mecanismos do funcionamento dessas práticas e os padrões neurobiológicos e psicológicos de interação entre corpo e mente, podemos identificar esses padrões e colocá-los no nosso mapa. Assim, eles se tornam objetivos terapêuticos ou marcadores diagnósticos, que potencialmente podem ajudar outras pessoas a atingirem esses estados com feedbacks em tempo real.

Você mencionou um sistema particular de mindfulness desenvolvido por Shinzen Young que é chamado de “sistema básico de mindfulness”. Ele está fundamentado na ideia de que indivíduos percebem e rotulam qualquer experiência em três modalidades: visual, auditiva e somática. Como isso é retratado no âmbito neurocientífico e de que forma essa distinção é relevante?

O modelo de Shinzen Young é muito útil porque ele cria uma abordagem algorítmica para a experiência fenomenológica. Há um determinado estado que Shinzen ensina em que você é encorajado a perceber e a rotular qualquer coisa a qual sua mente se direcione. Shinzen chama isso de “fazer nada”, no sentido de que você está deixando sua mente ir onde ela bem entender, mas com a consciência aberta.

Há uma interação entre a experiência de divagação mental e a da meditação. Na divagação mental não há consciência e existe uma tendência de deixar que ela influencie negativamente nossos comportamentos. Por outro lado, a meditação tem influencia positiva nos nossos comportamentos. Mas o conteúdo da mente é semelhante nas duas. O modelo de Shinzen nos permite focar nas diferentes modalidades de perceber as coisas. Não apenas permite que utilizemos modalidades muito específicas para vermos se nós conseguimos rastrear a atenção estável nessas diferentes modalidades, mas você também pode olhar para a diferença entre o foco externo e o foco interno em um objeto naquela modalidade que está surgindo. Uma coisa que nos interessa é o que caracteriza uma mente verdadeiramente em repouso. Não é uma mente que está livre de divagação, mas sim uma mente que está destituída de estímulos sensoriais.

Durante esses métodos, esses praticantes conseguem estabilizar a concentração durante a ausência de objetos mentais e é algo que é tipicamente descrito como o surgimento e a dissolução de um objeto. Depois que o objeto se dissolve, ele é chamado de objeto que “se foi”. Agora que o objeto se foi, será que o indivíduo ainda irá sustentar a atenção no campo visual em que há ausência de estímulos visuais? Você pode estudar essa interação perguntando onde está a mente deles enquanto eles se concentram em diferentes objetos. Isso cria um algoritmo muito bom. Nós não estamos vinculados a nenhuma tradição contemplativa, mas nossa opinião é que o modelo dele é muito útil nesse contexto específico.  Também queremos investigar tradições como judaísmo, islamismo e cristianismo e outras tradições que tenham elementos de contemplação ou de autotranscendência.

Em todos esses anos, qual tem sido a parte mais gratificante de ser um pesquisador de intervenções baseadas em mindfulness?

A parte mais gratificante é poder vir para o trabalho todos os dias e amar o que faço. Eu vejo a relevância para mim e para os outros, e eu estou realmente tentando levar essa área adiante, ajudando a reduzir o sofrimento e a melhorar a condição humana. Eu vejo isso como algo incrivelmente valioso e me sinto bem em fazer isso pelos outros.

O que o futuro da ciência reserva para nós? O que mais nos resta para aprender?

A tecnologia será o fator crucial que determinará como essa área irá progredir. Nós estamos limitados pelos métodos que nos permitem compreender a conexão cérebro-mente-corpo. O modelo em si será o mesmo: como se alcança a Iluminação, como podemos melhorar a consciência, a regulação, a transcendência – como isso tudo funciona? O que vai determinar se vamos conseguir mapear isso de maneira mais eficiente será a tecnologia. E, como a nossa sociedade é muito voltada para a tecnologia, é inevitável que aparelhos como telefones irão se tornar uma parte da integração e do desenvolvimento da consciência mente-corpo. Tendo dito isso, acho que mesmo dentro de 5 a 10 anos, é seguro dizer que teremos biossensores diferentes, que nos darão mais respostas fisiológicas e mais insights que indicarão os nossos estados de mente e corpo. Isso permitirá registrar e examinar os elementos da fisiologia que são prejudiciais a nós e regular esses elementos de forma mais eficiente. Vamos ter esses elementos de mindfulness em todos os setores da sociedade, seja na educação, no local de trabalho, na saúde: tudo se resume a melhorar a consciência sobre o que a mente e o corpo estão fazendo. Esses modelos vão nos ajudar a melhorar a condição humana em vários âmbitos. Nós já vemos isso acontecendo agora – há vários livros e novos currículos educacionais em mindfulness sendo desenvolvidos, mas nós ainda estamos na infância dessa ciência. Temos ainda um longo caminho a percorrer.

Tem algo que eu não tenha lhe perguntado, mas que você gostaria de compartilhar?

Tem uma coisa em que nós temos nos concentrado que são as redes neurais e os seus padrões, tentando compatibilizá-los com a fenomenologia. Outra coisa é lidar com todo o exagero que há por aí. Esse é um dos problemas sobre o qual precisamos ter consciência.  Há muita informação que vem da mídia que frequentemente diz que mindfulness é a cura para todos os problemas. Nós precisamos ser prudentes e entender que ela não vai curar tudo. Nesse momento, não há dados suficientes nem mesmo para mostrar que mindfulness pode aprimorar a atenção. A literatura sobre isso ainda é muito precária. Isso deveria nos levar a manter uma posição um pouco mais cética, mas uma dose saudável de ceticismo, uma vez que se trata de uma ciência ainda muito nova, e ainda estamos tentando demonstrar os benefícios e identificar os indivíduos que vão se beneficiar da meditação e quais não vão. Temos um longo caminho a percorrer. Algumas descobertas são certamente fascinantes, mas devemos abordá-las com cuidado, e sermos cautelosamente otimistas em relação a elas. Não podemos nos esquecer de que essa ciência é jovem e que ainda temos muito a aprender.

 

 

 

 

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